Apesar
de alguns estudiosos atribuírem a eclosão do Movimento Cabano como decorrência
da divisão das elites em torno da nomeação do presidente da Província do Pará,
a historiografia é praticamente unanime em afirmar que o movimento foi um
levante genuinamente popular contra as lastimáveis condições de vida a que eram
submetidas amplas parcelas da Província. Provavelmente, a maior e mais
sangrenta revolta social ocorrida no Brasil. Em artigo publicado nos Anais do
Arquivo Público do Pará, Magda Rici faz a seguinte referência ao movimento:
“Entre 1835 e 1836, vários grupos rebeldes, conhecidos como
‘cabanos’ tomaram o poder na cidade de Belém do Pará, a mais importante cidade
da Amazônia brasileira. Este movimento – A Cabanagem – obteve grande
popularidade entre a comunidade pobre do Pará. Assim, tem sido alvo de muitos
estudos desde 1835, e sua interpretação sempre tem sido alterada.”
Os
Cabanos eram constituídos por camadas sociais desfavorecidas como os caboclos,
os indígenas destribalizados e os negros libertos que moravam nas ilhas e
regiões próximas a Belém, além de alguns fazendeiros e comerciantes
inconformados com a política do presidente da província. O termo “Cabano” é uma
referência às habitações [1] daqueles que formavam os
maiores contingentes que integraram o movimento.
(Ilustração D'Arcy Albuquerque)
Com
raízes fincadas nos primeiros anos da década de trinta, do século XIX, a
Cabanagem alcançou seu apogeu no ano de 1935 quando o presidente da província,
Bernardo Lobo de Souza, foi deposto e os cabanos ocuparam Belém. Três
presidentes cabanos se sucederam no poder. O primeiro foi o fazendeiro e
comerciante Félix Malcher. Acusado de traição e de jurar fidelidade ao
Imperador, Malcher é deposto pelo chefe militar dos cabanos, Francisco Vinagre, que
assumiu o poder. Pouco tempo depois, Vinagre abandonou o posto ante aos ataques
das forças do governo central, apoiadas pelo mercenário inglês John Taylor.
Após
uma retirada estratégica, os cabanos procuraram reunir forças novamente,
surgiram grupos de resistência em algumas regiões próximas a Belém, entre elas
a ilha do Mosqueiro que era reduto cabano. Da ilha, era possível ver o
movimento das embarcações legalistas [2]. Os revoltosos não se
descuidavam de enviar emissários conclamando o povo à retomada do poder. O
capitão-tenente e comandante da fragata Imperatriz chega a alertar para o
número crescente de canoas trazendo pessoas para as praias do Mosqueiro e para
a “ponta do mel” (Icoaraci).
Em
dezembro de 1835 os cabanos retomam o poder e Eduardo Angelin assume a
presidência. Nessa ocasião, os representantes do governo central, liderados
pelo marechal Manuel Jorge Rodrigues, retiram-se às pressas para a baía de
Santo Antônio e se refugiam na ilha de Tatuoca. Alta, sêca, bem arejada e
localizada entre a baía de Santo Antônio e a baía do Marajó, a ilha de Tatuoca
passou a ser a sede do “governo legal” e núcleo da resistência legalista. Ao
descrever a situação geográfica desta ilha, o historiador Domingos Antônio
Raiol, o barão do Guajará faz a seguinte referência:
“... meia légua apenas decorre desta ilha a do Mosqueiro,
onde se distingue a povoação deste mesmo nome com seus sítios e casas de campo,
à beira-mar ou nas ribanceiras da costa , por entre palmares e arvoredos que
bordam a enseada da baía de Santo Antônio, com todo o verdor luxuriante da
vegetação equatorial. Por essas águas passam e repassam continuamente os
vapores e navios de todas as nacionalidades, os barcos e canoas do interior da
província, ou quando demandam ou quando deixam o porto da capital; e navegando
em direções opostas, cortam a monotonia.”
No
litoral da ilha do Mosqueiro, os cabanos mantinham dois pontos artilhados; o da
Vila, instalado nas barrancas da praia do Bispo e o do Chapéu Virado, com
artilharia montada nos penedos que ali existiam. Era desses pontos que tentavam
alvejar os navios que conduziam tropa de infantaria e artilharia, mantimentos,
armas, munições e fardamento para o marechal Manuel Jorge Rodrigues na ilha de
Tatuoca e para as tropas de Pernambuco que haviam aportado na ilha de Cotijuba.
Foram atacados pelos canhões de Mosqueiro o brigue “Pirajá”, o patcho
“Constança”, três cargueiros e uma charrua imperial “Carioca”.
Reanimado
com os reforços que acabavam de chegar, o marechal tratou de tomar providências
que lhes pareciam urgentes para debelar o inimigo, perseguindo os pontos mais
próximos, onde o mesmo havia se fortificado. Os pontos artilhados de Mosqueiro
estavam entre os mais inconvenientes. Do lado cabano, reunião que contou com
representantes de vários grupos, a preocupação com um ataque a Mosqueiro era
evidente o que levou os seus membros a reforçar a vigilância e abastecer de
pólvora e munição aqueles pontos.
Não
demorou muito para o marechal mandar atacar o ponto da Vila, em Mosqueiro. No
dia 20 de janeiro de 1836 enviou uma expedição composta por dois patachós, uma
dezena de batelões e igarités para desembarque e mais de cem homens que
despejaram uma saraivada de ferro e fogo sobre as defesas cabanas.
Impossibilitados de resistir ao ataque das forças imperiais, os cabanos
retiraram-se se entranhando nas matas e indo para o ponto do Chapéu Virado,
reforçando o contingente que já existia neste local.
No
dia seguinte, o marechal mandou ataca-los pelo 2º batalhão de caçadores
comandado pelo major Manuel Muniz Tavares, 36 voluntários civis, estes, todos
naturais da Vigia, sob a proteção da esquadrilha naval comandada pelo
capitão-de-fragata Ricardo Haydem e composta pelos navios de guerra,
Independência e Brasília, além de lanchões artilhados e canoas de pequeno
calado.
(Ilustração D'Arcy Albuquerque)
Nesta
ocasião, os cabanos que já esperavam o ataque, eram comandados por Auto Lorenço
que nos combates assumia também o papel de chefe dos artilheiros. Em boa
posição e entrincheirados, responderam ao ataque de forma vigorosa frustrando a
primeira tentativa de desembarque da soldadesca imperial. Atingidos pela
artilharia, destroços de várias embarcações são atirados na praia pelas ondas.
Os imperiais insistiam e os cabanos rebatiam prolongando a batalha por cerca de
cinco horas, até que a munição dos rebeldes acabou. Neste momento, foi dada a
ordem para a retirada, utilizando, mais uma vez, o abrigo das matas. Ficaram no
local da luta um morto, quatro feridos e Francisco Xavier Paio que, pela idade,
não mais aguentaria a correria pelas matas. Raiol assim descreve este episódio:
“... o desembarque que já
era esperado no dia 21 de janeiro de 1836, foi seriamente disputado; serviu
porém de muito a esquadrilha que o protegeu com renhido fogo de metralha sob o
comando da capitão-de-fragata Ricardo Hayden. A resistência cabana tenaz cedeu
por fim ao valor da perícia da força militar. Depois de algumas horas de
combate, os rebeldes abandonaram as trincheiras deixando alguns prisioneiros,
peças de ferro, armamento e munições.”
Disposto
a debelar o foco cabano na ilha de Mosqueiro, o marechal Manuel Rodrigues
ordenou, no dia seguinte, a formação de nova expedição pelos furos das baías do
Sol e de Santo Antônio com o objetivo de capturar e matar os cabanos que haviam
se refugiado naquela região. Alguns estavam dispersos enquanto que outros,
reunidos em pequenos grupos ainda esboçaram reação. Enquanto escapavam pelas
matas e rios que serpenteiam o interior da ilha, os cabanos foram largando
alguns objetos que carregavam em seu espólio; moradores da comunidade do
Espírito Santo, nas margens do rio Pratiquara, alegam que o nome da comunidade
advém do fato de uma coroa do divino, cravejada de pedras preciosas ter sido
jogada em um poço da localidade.
Dias
após os combates em Mosqueiro, o marechal Manuel Rodrigues envia um relatório
ao ministro da guerra, datado de 6 de fevereiro de 1836 contendo o seguinte
trecho:
“...no dia 21 de janeiro mandei atacar o ponto do Chapéu
Virado sendo encarregado deste ataque o 2º batalhão de caçadores de Pernambuco,
comandado pelo major Manuel Muniz Tavares, e 36 cidadãos da Vigia e Pará,
protegidos da barca de guerra Independência, paquête Brasília, igarités e botes
de desembarque. O resultado foi tomarem os rebeldes 5 igarités, e
destruírem-lhes outras cinco grandes que ficaram encalhadas por causa da maré,
encravarem uma peça de ferro de calibre 12, tomarem outra de calibre 3 também
de ferro e já muito velha, fazerem cinco prisioneiros, dos quais um é o capitão
da extinta legião do Marajó, Francisco Xavier Paio, que era o diretor e
secretário do comandante do ponto, antigo sóciodo cônego campos, e um tal
Filipi Joaquim, que, fazendo-se da legalidade tinha estado em Cametá espiando e
em outros pontos, e se retirava com as
munições que podia haver.
Soubemos depois que tiveram muitos feridos, porque no
combate só um morto se viu, o qual não puderam recolher tão rapidamente. Os
caçadores se portaram valorosamente, entrando no mato onde lhe fizeram os
feridos. A marinhagem desembarcou para a tomada das canoas e também sofreu
fogo. Tivemos 3 soldados gravemente feridos dos quais morreu 1; 5 soldados
levemente feridos e um soldado contusos.”
Meira
Filho ao escrever sobre o episódio faz questão de emitir o seguinte comentário:
“Imaginemos, em plena praia do Chapéu Virado, esta linda
região balneária que hoje desfrutamos, há um século e meio sendo invadida por
forças militares armadas, para expulsar, à base de metralha, os cabanos
entrincheirados, defendendo a sua liberdade e própria libertação da Província.
Ainda por ali há sangue bravo alimentando a terra e lhe dando o viço que
enobrece as grandes causas.
Mosqueiro, pois, participou do sonho daqueles bravos
cabanos, em seus anceios de levar a felicidade a seus lares e seus filhos.”
(Foto: arquivo Eduardo Brandão)
Apesar
da campanha que procurou classificar os rebeldes como violentos e sanguinários,
responsáveis pelo estado de abandono que se encontrava a Província e ter sido
considerado oficialmente extinto em 1940 quando Gonçalves Jorge de Magalhães, o
último líder cabano, se rendeu, o movimento permaneceu latente na memória do
povo do Pará. Nas areias da praia do Chapéu Virado, da praia do Areão e nas matas,
furos e rios do Mosqueiro ficaram os rastros, os sentimentos e o espírito
cabano.
(Foto: D'Arcy Albuquerque)
(Foto: D'Arcy Albuquerque)
[1] As
cabanas eram casas de taipa cobertas de palha, talvez uma mistura entre as ocas
indígenas e as casas dos portugueses, resultado do grande caldeirão de
influências culturais que surgiu na região. As cabanas predominavam nas vilas e
freguesias mais modestas.
[2]
Legalistas era o termo utilizado para definir as tropas leais ao governo
central.
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